Arquivo da categoria: Augusto de Sá

Ato III – Poeta mantém estável solilóquio entre os carros

Quando te construíram, homem,

Eu estava lá.

Vi que emergiste junto com o amor, como o amor,

Pelo amor, para o amor.

Dos cantos lúgubres, de algum sonho proibido,

Quase imperceptível, mas senhor de si.

 

E hoje, para o que olho?

Fragmentos, memórias, pudor?

Tu refazes diariamente seu meio,

Moldas todos ao seu redor,

Sentes vontades de qualquer forma de liberdade,

E ainda não sabes qual é a sua prisão.

Ela, pois, é o mais lúcido dos anjos,

O mais nobre dos sorrisos,

E a única razão de tua vida:

A imensidão perene de morrer.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Ato II: Poeta tenta contactar homem e é impedido pelo tráfego

Em nada inspira-me uma cidade.

Em tudo a cidade é inspirada:

Cresce, arranha o céu,

Endurece, arranha o homem.

 

Vejo-te deslocado em si,

Tentas humanizar o que tocas,

Nada compensará.

Deus não atravessará a rua.

O amor não nascerá na calçada.

Nenhum auto te entenderá.

3 Comentários

Arquivado em Augusto de Sá

Ato I: Poeta encontra homem perdido em si

Abraçou-me uma escuridão.

O ar da cidade pesa toneladas,

A alma do ser paira n’algum lugar,

Uma sinalização luminosa não conduz a canto algum:

Já é um templo em si.

 

Não me comove o sepultamento coletivo,

Dá aval ao avanço do trem, do carro, do avião.

Um céu chora burocraticamente.

Um solo não tem por que absolver.

Um homem não tem pelo que morrer.

 

Nunca teremos uma parte desse infindável latifúndio.

Inexistimos, homem.

E ao mesmo tempo brilhamos

(na avenida, na gasolina, na margarina).

 

Somos fragmentados, homem.

Perco minha batalha para ganhares a sua.

Vivemos por alguns dias, moldaram-nos em puro ouro,

Fomos adquirido e hoje somos bibelô.

Estamos impassíveis, homem.

Imersos em sorte,

Inertes,

Fundamentados e refundamentados.

 

Tudo está na mais perfeita ordem.

A vida é bela em letras garrafais.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Ainda claro enigma ou Enésima epopeia do Raso.*

Nos locais menos tangíveis, pelos cálculos mais tangíveis,

Abre-se o ser em uma estrada asfaltada.

Nosso chão agora desalmado condiz,

nossa alma agora pavimentada valsa.

Ríamos como poucos, mas agora somos homens

Somos como homens, mas agora rimos:

Temos em mãos como e onde,

só não temos nosso porquê.

A menor ausência em nosso raso se faz tudo

Afirmamos que não nos seduz e tentamos sair

Em dedos em riste, em rostos fechados, em contas imprecisas

E ainda estamos amarrados e finalmente não inerentes

Às moralidades, às sinapses, aos espelhos e aos olhos

(segue-se um riso nervoso).

Só temos a nós mesmos e nossas bagagens:

Algumas lembranças incômodas,

Desejos falhos de outrora,

Homens que nunca nos tornamos.

E ainda assim, nos afirmam:

Sois homens.

Na palavra rude dita a alguém, no certo e no errado,

No poder e não poder, no meio copo de álcool

No suplício por um chão ou céu (desde que conforte e não atrapalhe):

Oscilações, desejos, carne.

Não somos nós os humanos?

 

*Clara influência de Drummond, denota certa imaturidade, mas tem seu valor.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Não,

Eu não me lembro.

Eu jamais me lembraria.

Eu não poderia me lembrar.

Eterna elegia do eterno carnaval: estar.

Tento a redenção balanceando a vivência

A balança é inalterável:

Se a morte é suave como uma pluma

A vida é irrelevante como um homem.

Já é tarde, fui seduzido pela noite

Estive aqui, outrora

Procurei refúgio, alguém

Deu-me outro mundo consolo

Tentou-me definir o indefinido.

Não, um homem pode fugir da vida,

Pode fugir dos homens,

Pode fugir da sorte,

Jamais da frieza pulsante de si.

Tão inexplicável quanto a auto-piedade,

Tão cega quanto o conforto do colo de Deus.

Talvez eu me lembre de mim,

Não, eu não me lembro.

Eu me perdi em todas as esquinas que passei.

Eu me deixei levar por qualquer golpe de ar, pois

Se se algum homem sabe amar

Sabe que amar convém ao corpo como a liberdade convém à alma.

E eu estou preso à ânsia por me sentir [livre?]

Não, nenhum mundo tangível jamais me definirá

Nem eu subverterei nenhum mundo a mim.

Insensatez? Não, pois aflige-me o caminhar das formigas,

Pois irrita-me o nascer das estrelas mortas,

Pois toca-me o peso da alma.  [porém]

Ainda me encontro vivo, sim, ali.

1 comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Ao vencer

Hoje eu perdi.

Perdi para o mundo

Desleal batalha

Perdi.

À luneta da consciência perdi a alma

E em algum navio em Suez eu fui ouvido

Por algum homem que sonhava com a amada

Mas minha amada sou eu.

Perdi para o mundo

De dentro da razoabilidade

que insistem chamar minimalismo

Sucumbo ao peso do universo

Que durante anos sustentei.

E de dentro da minha janela

Eu perdi.

Perdi por observar passivamente

Este o meu erro pueril:

O mundo sou eu.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Felicidade

E  a mim, que fui ostracizado por todos

Todos exatamente iguais a mim

Todos vítimas dos seus próprios dedos em riste

Que um dia já apontaram a outrem

E que já previram um suposto naufrágio

Em águas tão rasas quanto às da vida.

E a mim, cujo barco só conhece as águas da alma

Cujas velas não funcionam por terem idiossincrasias

Tive o rosto escarrado.

Escarrado pelos próprios filhos do escarro

De cima de um muro de incertezas

Construído sobre os restos indiferentes e indefiníveis

Daqueles que sentiram a dor e caíram por pena de si.

E a mim, atingido pelo coitadismo de vidas

Que jamais tiveram um grão a mais do que eu

Mas que tem os mesmos grãos dos seus irmãos

Não tocam a mim com suas promessas

De caridades, de calmaria e unção

Mas todos somos reféns de nossas felicidades!

[falhas, efêmeras, mesquinhas].

E a mim que optei pela bala que perfura o crânio

Que lança ao chão e revela o que somos nós

[não o que poderíamos ser, nem o que fomos]

Enquanto assisto a todos que conheci

Fingirem que não há dores

Com a boca no cano de sua arma de felicidade.

A mim, meus caros irmãos

Reservem um pouco do desprezo e asco

E me deixem estirado no chão, acéfalo

Rastejando no que sou, espectador das brincadeiras

Nos ecos, nos risos, nas glórias que jamais valeram algo.

Meus caros irmãos, quiçá um dia sintam a bala penetrar a garganta

E então olhem os bilhões ao redor:

Sim, nós estamos todos sós.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá

Homem no Espelho

Apenas olhe para mim

Eu sou um dia ensolarado

e não se preocupe comigo

apenas saiba o que eu sou.

E deixe que eu respire algo do seu ar

e que eu tente sentir sua presença

e permita adentrar nos seus meandros

e me absolva do fato de eu ser eu.

Me eleve a semi Deus

me rebaixe a rastro de olhar

então me acorde deste sonho ruim.

E não me permita sair

entrei?

E me difame com um sorriso

Se o merecer.

E se orgulhe de me ter

Cabedal ou alicerce?

Realce que certos sonhos não são feitos para se realizar

para sorte da humanidade

e meu azar.

* Um dos meus primeiros poemas, com outra motivação e, hoje, com pouco valor atribuído por mim.

2 Comentários

Arquivado em Augusto de Sá

Ao parque

De todas as angústias e incertezas

Faz-se o parque e faz-se o sábado

Povoa-se de frustrações e consolo

Solta e implora que disperse

Do raso o mais raso.

Gangorras e bancos são povoados

De tentativas e um pouco de indiferença

Mas quando ascende, sabe-se que descerá

Mas quando acomoda, sabe-se que desacomodará

Mas quando distrai, sabe-se que acabará.

Por sorte acabará. Ao sair dos portões

Ao falar não-pueril,

à sirene hostil

findam o parque e o sábado

nesta incerteza-viver.

Deixe um comentário

Arquivado em Augusto de Sá